ENTREVISTA
Melina Furman fala de como ensinar Ciências
Para a especialista argentina, é fundamental
privilegiar a observação, a classificação e a formulação de perguntas
para desenvolver o raciocínio
Qual deve ser o foco do ensino de ciências na escolarização básica?
Melina Furman: Penso que devemos privilegiar o desenvolvimento de
algumas competências que têm a ver com a formação do pensamento
científico crítico e autônomo. Uma delas é sustentar o que se diz. Um
estudante deve saber convencer os outros da validade de suas afirmações
com base em evidências. Ao mesmo tempo, deve usar o pensamento
científico para analisar o grau de credibilidade das afirmações que
ouvimos dos outros, tanto das pessoas com quem mantemos contato direto
como dos meios de comunicação e de todas as outras fontes de informação
no dia a dia. Além disso, o pensamento crítico está relacionado à
capacidade - e também ao desejo, por que não? - de buscar explicações
para os fenômenos e de aprender a pensar em estratégias ou caminhos que
nos ajudem a responder às perguntas que nos fazemos constantemente. Em
resumo: o fundamental é fornecer aos alunos ferramentas que lhes
permitam pensar por si mesmos para que se tornem menos vulneráveis. E,
nesse sentido, o ensino de Ciências tem muito a contribuir.
Qual a responsabilidade da escola nesse processo?
Melina Furman: É muito grande, já que as pesquisas em Educação
demonstram que o pensamento científico não é algo inato ou espontâneo,
mas requer o desenvolvimento de hábitos de pensamento sistemáticos e
rigorosos, que exigem esforço e tempo. Como se trata de uma aprendizagem
complexa - que, inclusive, pode muitas vezes contradizer o nosso senso
comum -, é preciso que seja ensinada. Se pensarmos na quantidade de anos
que as crianças e os jovens passam na escola, fica claro que essa
instituição tem uma oportunidade única de contribuir para formar essas
habilidades de pensamento, num trabalho que começa na infância.
Nessa perspectiva, de que forma os professores devem atuar?
Melina Furman: Os educadores devem saber que os modos de fazer e
pensar da ciência são parte fundamental do que devem ensinar. Se esses
não forem seus objetivos didáticos, o desenvolvimento do pensamento
científico acabará ocupando um lugar secundário, enquanto os dados, a
terminologia e os conceitos continuarão figurando como o mais
importante. Tão essencial quanto examinar o saber já estabelecido é
apresentar aos alunos a ciência como um processo, como uma maneira de
chegar aos conhecimentos que já dispomos atualmente.
Como fazer isso na prática?
Melina Furman: Os bons professores de Ciências organizam suas
aulas incluindo diversas abordagens didáticas: a realização de
experiências, o trabalho com textos, os debates, as pesquisas sobre a
história da ciência, as atividades com o objetivo de analisar os
resultados dos experimentos feitos pela turma e muitas outras. O
importante é que as aulas permitam aos alunos ter um papel ativo.
Como conceber um currículo que privilegie a investigação?
Melina Furman: O mais importante é partir de uma grade que seja
coerente para todos os anos, de maneira que os conteúdos se tornem,
progressivamente, mais complexos. O currículo também deve mostrar quais
conceitos e habilidades serão ensinados em cada ano e em cada ciclo
escolar. Pode-se começar com competências mais simples, como a
observação, a descrição, a classificação, a busca de padrões e a
formulação de perguntas. Num segundo momento, abordar as que estão mais
próximas do pensamento hipotético-dedutivo, como a realização de
experiências, a análise dos dados, a elaboração de conclusões etc. Isso
permitirá que os professores - se possível, trabalhando em equipe -
possam planejar suas aulas. Ano a ano, essas sequências precisam ser
revistas para ajustes de acordo com observações de sala ou para
incorporar novas propostas de metodologia para a investigação em
Ciências.
Quais os grandes desafios que os docentes de Ciências enfrentam hoje?
Melina Furman: Alguns estão relacionados às condições estruturais
da profissão, como a falta de tempo para planejar as aulas. Entre os
específicos do ensino de Ciências, temos a necessidade de que os
educadores busquem formação específica, especialmente nas áreas de
Química, Física e Astronomia. Além disso, quando falamos na formação de
um pensamento científico e de uma experiência de aprendizagem ativa,
estamos pedindo a eles que ensinem de um modo que eles mesmos não
aprenderam, nem sequer em sua formação como professores. Naturalmente, é
muito difícil ensinar algo que não se conhece em profundidade. Por
isso, a formação contínua e o acompanhamento dos docentes em sua tarefa
são a chave para enfrentar os obstáculos.
O que levar em conta para planejar uma boa aula de ciência?
Melina Furman: Antes de tudo, é preciso conhecer, de maneira
clara, o destino que se pretende atingir, o porquê de tê-lo escolhido e
como se deve fazer para chegar lá. Então, creio que a atuação dos
professores deve começar por uma leitura analítica da grade curricular.
Esse é o principal roteiro para definir o caminho a percorrer durante o
ano. Porém, para cada aula, é importante se perguntar: que ideias-chave
quero que os alunos compreendam? Que habilidades científicas eles
poderão desenvolver com base nas atividades propostas? Defendo que é
importante ter isso em mente em vez de esperar que a aprendizagem ocorra
casualmente, como consequência do ensino dos conceitos.
No que consiste a ideia de "educar a curiosidade dos alunos"?
Melina Furman: Refiro-me à necessidade de não seguir o tempo todo
o interesse deles ou de ensinar somente os temas que lhes parecem
atraentes. O professor deve planejar, de antemão e com clareza, os
objetivos da aula. Tendo noção de aonde quer chegar, fica mais simples
canalizar as perguntas da turma e criar um clima de investigação em que a
curiosidade seja mais do que bem-vinda.
Por que a curiosidade da garotada tende diminuir à medida que a escolaridade avança?
Melina Furman: Parte dessa mudança tem a ver com o modo como se
ensinam Ciências nos anos mais avançados. A tendência é que se abandone
por completo a oportunidade de proporcionar aos alunos o contato com as
perguntas ou os fenômenos para centrar o estudo nos dados, na
terminologia e nas fórmulas. Quando isso ocorre, o ensino de Ciências,
acaba se voltando apenas ao produto, e não ao processo que foi
percorrido para chegar ao conhecimento dado. Assim, perde-se justamente o
aspecto da ciência que a torna mais apaixonante.
O que fazer de um experimento uma boa atividade de investigação?
Melina Furman: As boas experiências são aquelas que se relacionam
de maneira direta com o tema estudado, que apresentam perguntas a ser
respondidas e que não se restringem apenas a receitas que, seguidas
passo a passo, confirmam algo que já se sabe. Ao fazer bons
experimentos, os estudantes aprendem a manter todas as condições
constantes - salvo aquela variável que se quer investigar -, a
necessidade de registrar os dados para poder analisá-los depois e a
importância de escolher um método de medição ou análise que corresponda
aos objetivos, entre muitas outras coisas. Também é fundamental que as
experiências sejam guiadas sempre partindo de perguntas genuínas, que
não se prestem apenas a verificar informações que o educador já
transmitiu aos alunos.
É possível ensinar ciências sem contar com um laboratório sofisticado?
Melina Furman: Sim. Trabalho com a ideia de que se pode fazer
ciência explorando o que nos rodeia e buscando respostas para os
fenômenos que vemos em toda parte. É possível desenvolver boas
atividades com materiais muito simples, que os próprios alunos costumam
ter em casa.
Definições e terminologia devem ficar sempre para o fim de uma sequência didática?
Melina Furman: É recomendável. Em Ciências, o mais importante é
que os alunos compreendam os fenômenos, em vez de apenas saber como se
chamam. Os nomes, embora importantes para a comunicação, são meras
convenções. No entanto, o que vemos com mais frequência é que as aulas
comecem exatamente ao contrário. O professor inicia perguntando às
crianças: "O que é a força?" Depois, pede que procurem a definição no
dicionário. Faz tudo isso sem ter exposto os estudantes a fenômenos em
que há a interferência dessas forças - e aqui falo de fenômenos simples,
como deixar cair um objeto e empurrar outro. O mais adequado, a meu
ver, seria se basear na da observação do fenômeno em situações distintas
- nesse exemplo, a observação das diversas forças, de diferentes
intensidades, sobre o movimento dos objetos - para que os alunos comecem
a sequência didática compreendendo do que se trata.
Na disciplina, qual é a importância dos registros por escrito? Em que situação os alunos devem ser incentivados a escrever?
Melina Furman: Os registros são importantíssimos. Aprender a
pensar cientificamente tem tudo a ver com a capacidade de organizar
nossas perguntas, ideias, hipóteses, dados e conclusões. Não há uma
receita para decidir quando isso será necessário. O ideal é prever, no
momento de planejar as aulas, quais situações são propícias para esse
tipo de produção.
Quais os melhores instrumentos de avaliação em ciências?
Melina Furman: Creio que não importa tanto a forma de avaliar -
escrita, oral, longa ou breve. O essencial é que o instrumento de
avaliação esteja alinhado de maneira coerente aos objetivos didáticos
previamente definidos, permitindo analisar se os estudantes realmente
desenvolveram as habilidades propostas nas aulas. Uma estratégia para
criar boas avaliações é propor aos alunos que respondam a
situações-problema. Para resolvê-las, não basta dominar as definições e
os conceitos: é necessário compreender os fenômenos estudados para usar
as soluções em um novo contexto.
Entrevista Retirada da Revista Nova Escola